quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Os dragões do Éden


Vi esta semana uma palestra em que um cientista apresentava a si mesmo através de seu trabalho. Logo no início o palestrante usou a imagem de uma caixa de ferramentas - isso mesmo: uma caixa de ferramentas, com chaves de fenda, alicates, grifos e sei lá mais o quê. Para mim, foi como se ele disesse: "veja, o cientista não é nada mais que um técnico, um encanador, um pedreiro ou um dentista, alguém treinado para usar as ferramentas adequadas no momento adequado".

Não tenho nada contra pedreiros ou encanadores ou dentistas: mas não entrei na ciência por isso. Senão eu seria um encanador ou pedreiro ou dentista. Eu quis ser cientista, e não um profissional. Eu quis fazer arte, e não ter uma profissão.

Mas acho que ninguém mais vê isso, a ciência como arte: é um negócio, com dinheiro e recompensas distribuídos a quem sabe fazer negócios. Meus colegas se vestem como empresários, cabelos alinhados, roupas impecáveis, e se tornam diretores e têm projetos e verbas e financiamentos, enquanto eu, o oposto disso, não tenho nada além de um punhado de idealismo, que a cada dia vai minguando mais e mais.

Não sei mesmo o que faço no meio dos cientistas: acho que me daria melhor sendo um golfinho ou um boto, inteligente apesar de (ou por) não usar ferramentas... E para não parecer tão maluco, aqui eu cito Carl Sagan, em "Os dragões do Éden", onde ele diz que
"a criatura com maior massa cerebral em relação a seu peso corporal é a denominada Homo sapiens. O próximo nesta escala é o golfinho."

Ou seja, já que eu não posso, por pura incompetência, estar entre os primeiros, eu me contentaria, de bom grado, em estar entre os segundos. Pena que eu tenha escolhido errado.

(imagem: um casal de botos)

sábado, 24 de novembro de 2007

O estrangeiro


"O estrangeiro" é um livro do escritor francês/argelino Albert Camus que, em palavras que não são minhas, "prenuncia e simboliza todo o vazio moral da nossa era." Não sei se nossa era é de um vazio moral tão grande, mas há sim certo cinismo e bastante hipocrisia no ar, que não sei se são só de nossa era.

Por exemplo, no Brasil há desde sempre uma enorme disparidade social - os ricos têm muito, e os pobres, muito pouco:
"O Brasil é o oitavo pior em outro indicador usado para medir desigualdade, o Índice de Gini, cujo valor varia de 0 (quando não há desigualdade, ou seja, todos os indivíduos têm a mesma renda) a 100 (quando apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade). O índice brasileiro é 59,3 — melhor apenas que Guatemala (59,9), Suazilândia (60,9), República Centro-Africana (61,3), Serra Leoa (62,9), Botsuana (63,0), Lesoto (63,2) e Namíbia (70,7)."

No entanto, os brasileiros acham isso normal. Nos jornais e blogs de brasileiros (escritos obviamente por pessoas que não vivem na pobreza) não se fala nisso. Mas os estrangeiros, quando nos observam, notam o contraste e se espantam... Por exemplo, a AFP (Agence France-Presse) publicou esta semana uma notícia sobre a Starbucks no Brasil, cujo título é "Starbucks finds success as 'refuge' for Brazil's rich (Starbucks encontra o sucesso como 'refúgio' para os ricos do Brasil)". Não vi um comentário em blogs do Brasil, e a notícia quase passou desapercebida nos jornais brasileiros que eu assino (ponto para a Folha, que deu a notícia escondida, mas deu). Mas basta procurar no Google, e a notícia pode ser vista em jornais do mundo todo.

De qualquer modo, acho que, provavelmente, os blogueiros do Brasil estavam todos ocupados demais discutindo assuntos mais relevantes. Ou, quem sabe, seguiam os pensamentos de Meursault, personagem de Camus:

"Que m'importaient la mort des autres, l'amour d'une mère, que m'importaient son Dieu, les vies qu'on choisit, les destins qu'on élit, puisqu'un seul destin devait m'élire moi-même et avec moi des milliards de privilégiés qui, comme lui, se disaient mes frères. (Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia me escolher e, comigo, os milhares de privilegiados que, como ele, se diziam meus irmaõs?)"
(imagem: capa do disco Standing on a beach, do grupo The Cure, em que aparece a música "Killing an arab", baseada n'O estrangeiro de Camus)

domingo, 18 de novembro de 2007

Canção do exílio


O que me distancia do mundo? Um punhado de coisas. Por exemplo, acho que se alguém disesse que imaginou um acidente de avião, com o avião caindo em um determinado lugar (sei lá, Diadema, talvez), e se logo depois essa imagem se tornasse realidade, com o acidente acontecendo de verdade, mesmo assim a maioria de meus conhecidos, cientistas e céticos, diria que era apenas coincidência. Já eu, não tão cheio de certezas, teria que discordar, pois para mim seria coincidência demais.

O que me distancia do mundo? Moro numa periferia, onde a língua é outra e os olhos vêem diferente. No meu horizonte, hoje, há morros cheios de casas, e ruas com algumas árvores. Meus conhecidos não têm essse panorama. No entanto, embora o que eles vejam e sintam não seja o mesmo que eu, não creio que seja só uma questão de geografia. Meus vizinhos, moradores de periferia como eu, também não são como eu: também não falo a língua deles.

O que me distancia do mundo? Não sei. Só sei que acho que saber, inutilmente, que o bem-te-vi, que canta de cima de minha antena de TV, se chama Pitangus sulphuratus, só aumenta a beleza que vejo no mundo, e que isso, dentre outras tantas coisas, me faz ser muito só.

(imagem: um bem-te-vi - ou grande-kiskadi, segundo a Wikipedia)

sábado, 17 de novembro de 2007

Ok Computer


Em Campinas, participei de um encontro latino-americano de biomatemática, muito interessante, e que teve como atividade social de encerramento um encontro num bar de Barão Geraldo.

Meus companheiros conversavam sei lá sobre o quê. A banda do bar tocava algo de rock brasileiro dos anos 80 ou 90. Moças buscavam rapazes que buscavam moças. Uns bebiam, outros falavam em português, outros em espanhol. Um bebê nos acompanhava, estranhamente tranqüilo.

Chovia muito, e eu fiquei, de meu lugar na ponta da mesa, ao lado da porta, vendo, na noite, a chuva cair sobre pequenas luminárias de jardim, postas no chão, na entrada do bar. A chuva, ao encontrar as lâmpadas, formava pequenas nuvens, que faziam perceber imediatamente o calor das lâmpadas.

E assim me percebi, sem novidade alguma, inútil, na noite chuvosa dos tempos presentes.

Um casal hispano-falante me disse que falo bem o espanhol. No momento, só pude agradecer o elogio, mas eu sei que não é verdade: não falo bem a língua dos homens, e o silêncio que cerca esse blog é mais um sinal concreto disso.

Enfim, eu estou preso, a mim mesmo, por ordens do destino:

"Arrest this man,
he talks in maths,
he buzzes like a fridge,
he's like a detuned radio."
(Prendam esse homem,
ele fala em matemática,
ele zune como uma geladeira,
ele é como um rádio fora de sintonia.)

(imagem: o prédio do IMECC, da Unicamp, visto por dentro em toda a sua glória concreta, e que, para mim, se parece com uma prisão, embora seja bastante agradável)

domingo, 11 de novembro de 2007

Os miseráveis


Li hoje, na Folha de São Paulo, sob o título "Xícara de cafeteria vira suvenir clandestino", que "clientes da rede Starbucks estariam levando objeto de lembrança para casa" - na reportagem, aparece até a frase "clientes levam mesmo, é da cultura do brasileiro", dita por "funcionário de loja da rede de cafeterias Starbucks, que não se identificou, sobre o sumiço de 90% das xícaras em um mês".

Tá bom, não deve ser roubo: é da cultura brasileira mesmo, é só coleção... E quem faz esse tipo de coleção? Basta buscar no Google: "Adoro o café de baldão da Starbucks', diz Marina Person, VJ da MTV, que coleciona as canecas térmicas da loja." E, como se sabe, pessoas como Marina Person são a elite brasileira, logo, está tudo bem.

E eu me lembrei de uma outra história, bem antiga:

"Maria Aparecida de Matos, 24 anos, empregada doméstica, mãe de dois filhos, privados no momento do convívio com a mãe, está presa há quase um ano em São Paulo porque teria tentado furtar um xampu e um condicionador em uma farmácia (cf. matéria de Gilmar Penteado, Folha de S. Paulo de 12.04.05, p. C1). Mal sabe desenhar o nome e, depois de ter sido agredida dentro do presídio, acabou perdendo a visão do olho direito."


Pois é: Maria Aparecida... Se ainda fosse Marina, podia ter sido desculpada, mas com esse nome... A ela a lei, o olho por olho, e aos outros a beleza de uma caneca nova em casa.




(imagem: ilustração do livro Os miseráveis, de Victor Hugo)

sábado, 3 de novembro de 2007

Introdução à topologia


Em uma de minhas aulas de ecologia eu ensinei aos alunos que uma das grandes questões da biologia é o sexo: qual a razão dele existir? Não seria mais simples e eficiente se reproduzir sem sexo? Afinal, é o que as bactérias e samambaias fazem...

O sexo tem um custo alto para os indivíduos: há a necessidade de órgãos especializados, sem falar no gasto com busca de parceiros, corte, competição com outros indivíduos - e, no entanto, existem machos e fêmeas (com eventuais hermafroditas aqui e ali).

Eu acho tudo isso uma grande sacanagem - eu sou um macho humano, com as vantagens e desvantagens que ser humano e macho acarreta: e parece que biologia é destino. Por isso, gostaria que o hinduísmo estivesse certo no que diz respeito à reencarnação: seria bom poder reencarnar como outro ser, de tipo diferente do que eu sou.

Ah! Aqui entro no reino das especulações: se eu fosse viver outra vida eu seria ainda eu ou outro totalmente diferente? Minha alma, se pudesse migrar para outro corpo, continuaria a mesma, ou mudaria conforme o corpo? Biologia é destino?

Há na matemática um ramo que estuda as transformações que um corpo pode sofrer mantendo ainda uma identidade: é a topologia. Topologicamente, uma caneca e uma rosquinha são idênticos, já que um pode ser transformado no outro de uma forma contínua, suave.


Posto de outro modo, há dois tipos distintos de curvas fechadas, onde se volta ao ponto de partida, e que não podem ser deformadas a um ponto, tanto na superfície da caneca quanto na superfície da rosquinha. Canecas e rosquinhas são superfícies de mesmo genus, formadas pelo produto de dois círculos.


Seria a reencarnação algo assim? Poderia cada alma ser identificada por um 'invariante topológico' próprio? Não, eu não sei se existem almas ou se tenho uma, e se tenho se há algo, um número, uma medida, que possa caracterizá-la como única. Talvez eu seja apenas um número na multidão humana, como o 7 escrito por Mário de Sá-Carneiro:


"Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro. "


(imagem: a cidade de Konigsberg, no século XVII, com suas sete pontes que inspiraram o matemático Leonhard Euler a estudar topologia)