domingo, 30 de novembro de 2008

A náusea (2)


Ontem fui a uma comemoração na casa de uns amigos do trabalho, onde encontrei muita gente. Lá estava, por exemplo, uma moça que lá pelas tantas disse que após o fim de um relacionamento há várias fases, como a mágoa e a vontade de matar quem causou a dor, mas que isso passa. Eu, bem, só pude retrucar que comigo nunca tinha sido assim: a vontade que eu tive, nesses casos, sempre foi a de me matar.

Outro colega comentou que o pior show que ele viu foi do Nirvana, no Brasil, em que o vocalista estava tão bêbado ou chapado que não conseguia tocar nada. Eu retruquei que para mim Kurt Cobain era um herói por essas atitudes mesmo, que o levaram ao extremo do suicídio: pessoas comuns, sem características heróicas, fazem o que se espera delas - tocam quando é para tocar, para agradar a platéia, e fazem de tudo para viver, sem pensar, mesmo quando a vida não agrada nem um pouco.

Infelizmente, eu não sou um herói. Mas não falo ou escrevo para agradar esse ou aquele público. Eu não tenho público: ninguém se identifica comigo e eu não busco me identificar com ninguém. Eu tento ser apenas eu - e nesse processo desagrado muita gente que, se não me ignora, faz cara feia quando eu passo.

Ontem, no churrasco, eu falei que em minhas aulas atuais, de astronomia, eu sempre comento que tudo gira ao redor de algum centro: os planetas ao redor do Sol e de si mesmos, o Sol ao redor da galáxia e de si mesmo, e nós, homens, giramos o tempo todo ao redor das mulheres... Uma colega me disse que isso era demagogia: não, não é - eu acredito nisso, senão não falaria para os alunos, mesmo que de forma brincalhona.

Cheguei em casa e vomitei à noite quase tudo que comi. Tenho o estômago fraco. Mas eu sei que é pior: minha alma é uma planta em uma casa de vidro, e o mundo está cheio de gente que gosta de quebrar vidraças só por diversão... Enfim, hoje estou de ressaca, mas não é só de ontem.

(imagem: uma estufa que fui visitar algumas vezes)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

História verdadeira


Sexta passada fui ao shopping, e almocei, sozinho, num restaurante de comida chinesa. Peguei um biscoitinho da sorte, e dentro havia o tradicional pedacinho de papel com a seguinte mensagem: "Uma vassoura velha tem seu valor".

Pois bem, um biscoito sabe me definir melhor do que eu: sou uma vassoura velha. E o meu valor? Oras, todo mundo sabe qual é o valor de uma vassoura velha - o mesmo das minhas opiniões...

Dessa vez, não tive vontade de comer gelatina.

(imagem: fortune cookie)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Leisure (2)

Às vezes, eu não queria pensar em nada. Há dias em que eu não queria fazer nada, nem pensar, nem andar, nem respirar. E há dias em que eu queria amar.

Só que eu tenho uma consciência, que me diz que eu estou velho, que eu tenho que ficar quieto, que eu tenho que ir cumprir minhas responsabilidades, e correr, correr, correr...

Eu me vingo comendo gelatina no almoço.



"You're taking the fun
Out of everything
Making me run
When I don't want to think
You're taking the fun
Out of everything
I don't want to think at all

There's no other way
There's no other way
All that you can do
Is watch them play

You're taking the fun
Out of everything
You're making it clear
When I don't want to think
You're taking me up
When I don't want to go up anymore
I'm just watching it all"

Leisure

O Sol está perto e ao mesmo tempo longe demais. As estrelas existem e ao mesmo tempo não. De verdade, mesmo, só eu existo e debaixo dos meus pés a terra. E nada, nada mesmo, me faz crer que algum dia será diferente - a bela face do Sol veio e se foi ontem e hoje, e vê-la todos os dias não me ajuda em nada: eu continuo vivo e não.



"I see her face
Everyday
I see her face
It doesn't help me

She's so high
She's so high
I want to crawl all over her

I think of her
Everyday
I think of her
It doesn't help me

She's so high
She's so high
I want to crawl all over her

She doesn't help me"

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Os planetas


Estou caindo de sono: dormi mal. Meu filho, ainda pequeno, não conseguia dormir e veio para minha cama. Assim, recebi uma dúzia de tapas e empurrões, e acordei várias vezes. Bem cedo na manhã, ele me acordou contando que tinha sujado as fraldas. Corri com ele para o banho. E cá estou agora, horas depois, apenas semi-desperto, quase um zumbi, com uma pilha de provas para corrigir...

Isso é a vida: às vezes o mundo me chama de volta e eu tenho que abandonar os planetas em que me refugio.

(imagem: "concepção artística" de um planeta extra-solar)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um dia, um gato


Eu escrevo "gato", alguém lê "sozinho". Isso é poesia, feita pelo leitor, que consegue encontrar num texto o que não estava lá.

Mas vá lá, eu entendo: gato é um bicho maravilhosamente independente, e que, por isso, cheira à solidão. Cachorros, por outro lado, lembram matilhas e famílias. Só que eu quando lembro de gatos, não penso em nada além de beleza: "Gato é a inspiração divina no seu melhor momento."

Por isso mesmo, às vezes perco um bocado de tempo buscando e vendo moças com face, postura e andar felino...

(imagem: estátua de uma deusa egípcia, Bastet)

sábado, 8 de novembro de 2008

Mangá - Como o Japão Reinventou os Quadrinhos


Na verdade, na verdade, desde minha infância meu sonho era ter um robô igualzinho a mim guardado dentro do armário, que tomasse o meu lugar de vez em quando, enquanto eu iria ler gibis e ver desenhos na TV...

Se eu soubesse o que me esperava, eu nunca teria querido crescer. Ou teria nascido um gato.

(imagem: minha infância)

ABC da relatividade


Eu tenho um gêmeo, que quis conhecer o universo, e então foi. De vez em quando ele volta, sempre mais jovem do que eu, e toma o meu lugar: é quando eu pareço feliz. No entanto, isso passa logo - essa felicidade dele, quando não em movimento, acaba mais rápido...

(imagem: um par de vasos gêmeos)

O que é vida?


Minha alma, presa em uma caixa onde espera que o acaso a liberte, não está nem viva nem morta: está numa superposição de estados... E se alguém abrir a caixa para vê-la, só conseguirá ver mesmo é um nada que desaparece aos poucos, mas que deixa para o fim um grande sorriso.

(imagem: eu, desperto e não, ao mesmo tempo)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Mother Night (2)


E, em consonância com os novos tempos, segue o poema abaixo, que talvez tenha dado idéias a Kurt Vonnegut:

"MOTHER NIGHT, by James Weldon Johnson (1871-1938)

Eternities before the first-born day,
Or ere the first sun fledged his wings of flame,
Calm Night, the everlasting and the same,
A brooding mother over chaos lay.
And whirling suns shall blaze and then decay,
Shall run their fiery courses and then claim
The haven of the darkness whence they came;
Back to Nirvanic peace shall grope their way.

So when my feeble sun of life burns out,
And sounded is the hour for my long sleep,
I shall, full weary of the feverish light,
Welcome the darkness without fear or doubt,
And heavy-lidded, I shall softly creep
Into the quiet bosom of the Night."


Hoje professor de astronomia, mas ontem estudante de literatura, eu acho que também devo, completamente cansado da luz febril, dar boas vindas à escuridão sem medo ou dúvidas, pois até mesmo os sóis que giram devem brilhar e decair.

Não, não sei o que fazer de mim, mero pedaço de rocha sem brilho, como tantos outros desse cinturão de asteróides...

(imagem: o autor do poema acima, cuja mãe foi a primeira professora negra em uma escola pública na Flórida)

Mother Night


Uma vez, em uma outra vida em que fui estudante de letras na USP, me pediram para fazer um trabalho sobre poesia e cinema, e curioso que eu era fui ciscando, ciscando, até chegar a Kurt Vonnegut, que me apresentou Tiglath-pileser, num diálogo travado entre o personagem principal do livro "Mother Night", preso por crimes de guerra, e um guarda, que serve de carcereiro (a tradução é minha):

"Arnold está estudando para ser um advogado. A vocação de Arnold e de seu pai, um armeiro, é arqueologia. Pai e filho passam a maior parte de seu tempo livre escavando as ruínas de Hazor. Eles trabalham sob a direção de Yigael Yadin, que foi o Chefe de Estado-Maior do Exército Israelense durante a guerra com os estados árabes.

Assim seja.

Hazor, Arnold me diz, era uma cidade cananéia no norte da Palestina que existiu por volta de mil e novecentos anos antes de Cristo. Cerca de mil e quatrocentos anos antes de Cristo, Arnold me diz, um exército Israelita capturou Hazor, matou todos os quarenta mil habitantes, e queimou a cidade.

"Salomão reconstruiu a cidade," disse Arnold, "mas em 732 A.C. Tiglath-pileser o Terceiro a queimou novamente."

"Quem?" eu disse.

"Tiglath-pileser o Terceiro," disse Arnold. "O assírio," ele disse, dando um cutucão na minha memória.

"Oh," eu disse. "Esse Tiglath-pileser."

"Você age como se nunca tivesse ouvido falar dele," disse Arnold.

"Nunca ouvi," eu disse. Dei de ombros humildemente. "Acho que isso é bem horrível."

"Bem --" disse Arnold, dando-me um olhar professoral, "parece que ele é realmente alguém que todo mundo deveria conhecer. Ele foi provavelmente o homem mais memorável que os assírios produziram."

"Oh," eu disse.

"Trarei um livro sobre ele, se você quiser," disse Arnold.

"Isso seria gentil da sua parte," eu disse. "Talvez eu consiga pensar sobre assírios memoráveis mais tarde. Nesse momento minha mente está bem ocupada com memoráveis alemães."

"Como quem?" ele disse.

"Oh, eu tenho pensado bastante ultimamente sobre meu antigo chefe, Paul Joseph Goebbels," eu disse.

Arnold pôs um vazio no rosto. "Quem?" ele disse.

E eu senti o pó da Terra Sagrada rastejando para me enterrar, sentindo quão grossa seria a coberta de poeira e pedras que um dia eu iria vestir. Eu senti trinta ou quarenta pés de cidades arruinadas sobre mim; abaixo de mim alguns restos de cozinha primitivos, um templo ou dois -- e então --

Tiglath-pileser o Terceiro."


Vendo uma euforia dominar o mundo em relação a uma eleição em um país distante, sinto o mesmo peso, de metros de cidades em ruínas sobre mim, de templos e nomes e pessoas que deviam ser importantes, e sinto que, apesar disso, amanhã ainda terei que acordar e me alimentar e ir ao meu trabalho, onde outras faces sem nome me encararão o dia todo...

Nem tão surpreso, não posso deixar de notar que o preso - e o peso - sou eu.

(imagem: um impressionante "touro alado assírio" que eu tive o prazer de ver no Louvre, em Paris)